segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Admirável Mundo Novo


Impossível não lembrar do Admirável Mundo Novo ao ler nos jornais sobre o nascimento, na Espanha, de um bebê geneticamente selecionado para salvar vidas com o sangue de seu cordão umbilical. Não que o pequeno Javier vá servir de matriz para alfas, betas ou ípsilons da sociedade perfeita de Aldous Huxley, mas qualquer notícia sobre feitos da engenharia genética dá a impressão de que a Humanidade caminha em direção a esse aprimoramento: uma sociedade livre das imperfeições que a seleção natural não consegue sanar.
Nesse caso específico, o embrião foi selecionado por não dispor geneticamente da mesma anemia hereditária e congênita de seu irmão de 6 anos, doença que o está levando à morte, ou pelo menos condenando a uma vida de restrições e seqüelas. Crêem os médicos que, a partir da transfusão do sangue do cordão umbilical do recém-nascido, o irmão Andrés estará em quatro ou cinco anos livre da anemia, e portanto livre das transfusões constantes que o têm mantido vivo.
A manipulação genética é algo que ainda assusta, que ainda deixa parte da população desconfiada. Nem o desenvolvimento de vegetais transgênicos foi ainda absorvido totalmente, o que dizer da clonagem, das experiências com células-tronco, da seleção embrionária que gera crianças livres de males hereditariamente possíveis? Os religiosos condenam furiosamente qualquer invasão da área que, acreditam eles, deve estar sujeita unicamente à atuação divina. Mas será mesmo?
Admitindo-se a existência de Deus, não garantiu Ele próprio ao homem – reconhecem até mesmo os crentes de carteirinha – o dom do livre-arbítrio? Não estaria incluída nesta capacidade do livre-alvedrio o poder de alterar o próprio destino, de buscar a cura, de prolongar a vida? Um Deus misericordioso, como O pintam, não estaria dando aos homens, Sua imagem e semelhança, as armas para que lutem contra a sorte que Ele próprio teria esboçado? Por que, então, tanta resistência?
Creio que a engenharia genética poderia ter alcançado estágios mais avançados se não enfrentasse os entraves do preconceito religioso. Prova recente desse atraso causado pela mistura indevida de ciência e religião foi a briga de foice travada no Supremo Tribunal Federal pela constitucionalidade da Lei de Biossegurança, provocada principalmente pela resistência sagrada ao uso de células-tronco embrionárias. Ora, os cientistas chegaram a esse ponto nas pesquisas por conta do livre-arbítrio de prosseguir com elas, ou graças a um pacto com o Demônio?
No caso da seleção genética, como a que produziu Javier, não é um sonho possível criar toda uma geração livre de males congênitos, de doenças incuráveis e de prováveis deformações físicas? Mesmo que não se conceba a sociedade de castas que é a base do Admirável Mundo Novo, não é viável antever organismos mais puros, refinados, mais distantes da imperfeição? Ou o homem tem de se conformar com o que Deus dá?

Até me vi compelido a escrever sobre o caso do seqüestro com morte em Santo André – mesmo porque tem mais a ver com meu histórico profissional – mas preferi falar sobre vida. E decidi, sem ter medo de parecer piegas, dedicar o texto acima à memória de Eloá Cristina Pimentel e às vidas que a doação de seus órgãos está salvando.

19 comentários:

Anônimo disse...

Caro primo

Houve um tempo em que o transplante de orgaos foi tambem visto com muita suspeita, um atrevimento humano ao alterar a obra Divina. Hoje ja é encarado como uma salvadora conquista cientifica. Esperemos que o mesmo aconteca com o uso das celulas-tronco. Logico.. tudo requer uma boa regulamentacao, mas ja pensou livrar milhoes de pessoas do sofrimento de males fisicos incuraveis?
Puxa, acompanhei o caso da Eloa e tinha certeza que tudo acabaria bem.. triste.

Anônimo disse...

Mas.. o que foi mesmo interessante foi o empate..

Marco Antonio Zanfra disse...

Depois de estar perdendo por dois a zero, meter dois gols em seguida no Rogério Ceni, sendo um contra daquele nojo de pessoa que é o Dagoberto, pode ter certeza de que eu estou achando muito mais interessante do que você.

Anônimo disse...

Muito bonito seu ultimo texto "Seu Zanfra". Só fico pensando nas consequencias da vida do pequenino Javier e de outros tantos bebês que sao concebidos principalmente para salvar vidas de irmaozinhos doentes. Nada contra, até porque pais que amam seus filhos incodincionalmente, fazem o que lhes tiver a mao para salvar seus filhos. Fico pensando como terapeuta d efamílias no peso de "nascer para salvar".

Anônimo disse...

Zanfra, você frustrou as minhas expectativas. Estava esperando seuc mentário sobre o sequestro e morte de Santo André.

abs

Marco Antonio Zanfra disse...

Desculpe, Zé. Mas todo mundo está comentando, e eu seria apenas um a mais. Às vezes, acho, o diferencial de um blog é frustrar as expectativas.

Carlos Martí disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Carlos Martí disse...

Com muito bom critério, achei a escolha do tema muito oportuna, assim como as razões para fazê-lo. Realmente na Espanha vivemos momentos de muita lucidez em que instituições como a igreja, cujas barbaridades históricas e associações inconvenientes a regimes pouco humanitários, tão má fama nos deram, aos espanhóis. A fé católica é hoje unicamente, mais uma opção religiosa com cada vez menor poder de decisão sobre o destino dos espanhóis. Assim foi na aprovação do casamento entre homossexuais e assim está sendo na discussão acerca da eutanásia, que juntamente com o aborto por causa justificada poderiam parecer aos menos avisado, o contra-ponto à geração de embriões-mãe com finalidade curativa, sem dúvida, uma ode à vida. Na verdade, o fundo de todas essas questões é exatamente o mesmo, o direito a escolher a melhor opção para viver, ao menos, dentro das possibilidades garantidas pelo conhecimento humano. Para isso é fundamental abandonar políticas populistas e paternalistas e passar a confiar na capacidade do povo decidir seu próprio destino, garantindo-lhe, isso sim, a possibilidade à máxima informação e à pluralidade de opinião. É a única forma de evitar os caminhos do preconceito e das crenças medievais.

Marco Antonio Zanfra disse...

Grande Carlos Enrique Martí Hernández!

Fabiano Marques disse...

Acho sensacional a evolução da ciência.
Foi para isso que saímos da caverna.
Aliás, eu estava na caverna. Dias e dias sem visitar o blog.
Trabalho escravo.
abrasssss

Anônimo disse...

A postulação é bastante simples: tem gente que acredita em Deus, tem gente que não acredita. Tem gente que é religioso, tem gente que não é. Essa diversidade é real desde que o mundo é mundo, e portanto deve ser respeitada. Ninguém tem direito de impor convicção nenhuma a ninguém. Portanto, a Igreja não tem o direito de querer impor seus princípios para fazer as leis que regem essa sociedade díspar. O problema é que a Igreja julga ser superior a essa diversidade.

Celso Martins disse...

Ô sô linguarudo: prá não dizer depois que nunca postei um comentário aqui, como acabas de fazer com o pobre do Frank. Sucesso!
Abraços
Celso martins

Carlos Martí disse...

No "El País" de hoje:

http://www.elpais.com/articulo/reportajes/Nacidos/salvar/elpepusocdmg/20081026elpdmgrep_1/Tes

Marco Antonio Zanfra disse...

Não deu. O link que você mandou avisa: "Lo sentimos. La página que ha pedido no existe o ha sido borrada del servidor". Como não sei exatamente o que procurar, além da data da publicação, não adianta seguir a recomendação: "Puede tratar de encontrar la página que busca desde la portada de ELPAIS.com, en el índice informativo, en el mapa web o en el buscador".

Carlos Martí disse...

Nova tentativa de passar link do artigo do "El País" de hoje. Clique AQUI

Carlos Martí disse...

Confesso que a comemoração foi um tanto tímida e envergonhada pelo sabor a prato requentado e ingerido na cozinha, ao som da festa, lá na sala. Mas o importante é que voltamos.
Mas tudo mudou quando assistindo o programa de futebol internacional da fantástica TV3 Catalã, em que pude ver os gols do Fluminense neste fim de semana, principalmente os dois primeiros:
No 1º- Memorável "pas de deux" da primeira figura do balé Palestra, Marcos. Que delicadeza, que graça...
No 2º- Precisão irrepetível de uma carambola digna do velho Carne Frita. Inesquecível.
Aí sim, deu pra comemorar.

Marco Antonio Zanfra disse...

Tudo bem. Depois de passar um ano pastando na série B, os corintianos merecem um pouco desse prazer catártico.

Carlos Martí disse...

Sabe como é (somos) torcedor de futebol. Quando o desespero bate, comemora até escanteio a favor.

Bonassoli disse...

Sou católico. Mas sou amplamente favorável à estudos e práticas que possam salvar vidas. Desde, claro, que sob controle e que não prejudique a vida de terceiros, quartos, quintos, etc...

Zanfra, parabéns pela homenagem. Como sempre, brilhante.