segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Contos de fadas

Jamais concordei inteiramente com o desenrolar dessas histórias que contavam para a gente, na infância, para nos mostrar que, no fundo, o mundo é lindo e o Bem há de triunfar. Sempre as achei muito conto de fadas, se me entendem. Sempre achei um pouco forçado demais, por exemplo, alguém se casar e viver feliz para sempre, como acontece com príncipes e princesas de fábulas, porque desde pequeno me conformei com o fato de que nada de bom dura para sempre.
Se para sempre é um tempão danado dentro dos padrões de medição do universo terrestre, quanto representaria naquele mundo paralelo das histórias infantis? Como é que A Bela Adormecida e o Príncipe poderiam viver felizes para sempre se, num certo dia, por exemplo, ele poderia descobrir que sua amada tinha o hábito de apertar o tubo de pasta de dente pelo meio? Quanto tempo ele conseguiria continuar dormindo com ela, sorrindo de felicidade, depois de perceber que aquele seu suave ressonar estava se transformando, dia após dia, num ronco cavo e estridente?
Acho que meus padrões de realidade sempre foram muito fortes, desde criança. Nunca consegui aceitar, por exemplo, que alguém pudesse ir a um baile e dançar uma valsa rodada usando sapatinhos de cristal. Por mais delicados que fossem os pés dos personagens das histórias infantis, seria impossível que, naquele alvoroço da festa, ninguém pisasse nos pés da Cinderela, quebrasse os sapatinhos e, inclusive, a submetesse ao risco de uma grave lesão hemorrágica.
Mais: quem conseguiria – e em quanto tempo – deixar os cabelos crescerem mais de vinte metros e, sem a ajuda de tônicos capilares ou xampus, mantê-los fortes o suficiente para suportar o peso de um príncipe encantado? Sou mais propenso a acreditar que Rapunzel jogava mesmo era um rolo de cordas para que seu amado tivesse acesso ao aconchego da torre onde ela era mantida confinada.
E Branca de Neve? Que ser humano em sã consciência, criado na opulência de um castelo (ainda que com uma Rainha Má), teria condições de viver num casebre com sete marmanjos de um metro de altura, cada um com suas idiossincrasias e seus defeitos, e ainda ocupar-se de todos os afazeres domésticos? Será que ela nunca teve ímpetos de afogá-los no banho – isso quando eles tomavam banho – num momento de estresse? Será que, no fundo, ao morder a maçã envenenada, ela não estava mesmo era querendo dar um fim a sua vidinha miserável?
Reconheço que pareço chato, um estraga-prazeres, mas felizmente não estou sozinho: acaba de sair na Espanha um livro em que os personagens das histórias infantis deixam de comportar-se como personagens de histórias infantis para assumirem seu lado mais real, mais humano. Cinderela, por exemplo, nem dá bola para as doze badaladas, vai embora do baile no meio da madrugada e abandona o príncipe. Branca de Neve só suporta a depressão à base de Prozac e resolveu tomar sol para bronzear a pele. A novidade da Bela Adormecida é que ela acordou sozinha de seu sono encantado.
Lançado de forma independente – porque as editoras espanholas não o quiseram publicar – La Cenicienta Que No Queria Comer Perdices, criado pela escritora Nunila López Salamero e pela desenhista Myriam Cameros Sierra, vendeu mais de 50 mil exemplares nas primeiras semanas. Deve ser lançado no Brasil ainda este ano.


O título, traduzido, é “a Cinderela que não queria comer perdizes”, e se refere à frase final dos contos de fadas na Espanha – “foram felizes e comeram perdizes” – em lugar do nosso tradicional “casaram-se e viveram felizes para sempre”. Nosso amigo Carlos Martí, lá de Valência, poderia falar alguma coisa a respeito dessa tradição ibérica e desse livro... Mas eu acho que ele está mais mergulhado em afazeres do que uma criança numa piscina de bolinhas.

34 comentários:

Blog do Morani disse...

Acho mesmo que até as crianças de hoje não mais acreditam nos "finais felizes" de estórias infantís como Branca de Neve, Cinderela e Bela Adormecida, sem esquecer a dos 3 Porquinhos e o Lobo, Chapéuzinho Vermelho e o Lobo (sempre ele!). Suas mentes estão mais para as grande lutas dos jogos de vídeo, para filmes como "Guerra nas Estrelas" e outros similares. É desejar empurrar mente abaixo as tramas, por exemplo, dessa novelinhas dos canais de TV. Sabemos que toda literatura, em qualquer época, sempre foi direcionada à obediência de governos totalitários ou cujos interesses, no "Bem estar" da população, ultrapassavam o crível, e sempre de acordo com o tempo em que eram lançadas essas estórias. Quem esqueceu os lançamentos de revistas em quadrinhos (origem norte-americana) publicadas pela editora O Globo? Os heróis invencíveis, cheios de poderes, sempre ganhavam suas lutas contra o Mal - Cap. Marvel e Dr. Silvana; Super-Homem e os inimigos dos EUA; quase todos esses heróis dos idos de 40 porfiavam contra "nazis" ou contra os "japas" (O Imperador Hiroito era mesmo avacalhado em caricaturas horrendas). Faziam dos "bandidos" verdadeiros Dráculas e dos "mocinhos" anjos do bem!
A realidade tornou-se tão crua e cruel que ninguém crê mais em "finais felizes", em todos os quadrantes da vida atual. Acho que serão vendidos mais de 50 mil exemplares de "La Cenicienta Que No Queria Comer Perdices". Nunila Lopez se arrojou a uma aventura que deu certo. Nisso, eu acredito!

Unknown disse...

A única forma de ser "Felizes para Sempre" é casar com a loirinha da série Heroes....tudo que rompe nela volta ao normal em segundos, daí....é só alegria...
Descupem a ironia...

Blog do Morani disse...

Bob:

Será que o Martí de Valência, que pode destrinchar essas "perdices" das estórias infantís na Espanha,
poderia dar explicações sobre a lourinha da série "Heroes"?
Isso nem o Gênio da Lâmpada de Aladim saberia explicar.

Marco Antonio Zanfra disse...

Mas não são necessários superpoderes para certas reconstruções, Bob: já existe a reconstituição cirúrgica, se isso faz tanta diferença.
Mas a lourinha, Claire - vivida por Hayden Panettiere - é mesmo uma gracinha, com ou sem sua capacidade de regeneração!

Gennara Vitti disse...

Por que apenas o "suave ressonar" da Bela Adormecida pode transformar-se em "ronco cavo e estridente" e perturbar a felicidade do príncipe? Príncipe não ronca? Não deixa roupas espalhadas pelo chão? Não aperta o tubo de pasta de dente no meio? Quanto machismo!

Marco Antonio Zanfra disse...

Desculpe-me, Gennara, mas não sou de ficar em cima do muro. Tinha de tomar um partido e escolhi ficar do lado do príncipe - que, afinal, é um produto genérico, já percebeu? As personagens principais são todas femininas - Rapunzel, Branca de Neve, Bela Adormecida - e o príncipe é... ora, é o príncipe. Os coitadinhos precisavam de alguém que lhes desse voz. Machista ou não, resolvi assumir sua defesa: os príncipes são anônimos, mas não roncam, não cospem no chão, não deixam cuecas e meias espalhadas nem coçam o saco! São uns príncipes encantados!

cilmar machado disse...

O Morani dá um show ao fazer sua análise político-social sobre os heróis das historinhas infantis e os interesses dos poderosos chefões da humanidade. Foi muito feliz ao se expressar. Mas, fico pensando: será que esse mundo de fantasias, de uma vida feliz para sempre, de um amor eterno, etc., não foi substituído pelo desejo de poder das grandes nações sobre as demais ( Duplo X, He-Man e outros)? Será que também o eterno desejo de eternidade e de tudo poder do homem, não se reflete nas historinhas (seriadas ou não) de hoje? Basta relembrar o Heroes, aqui citados.
A verdade é que o homem sempre precisará do sonho, pois a realidade nua e crua o assusta...

Cintia disse...

Ainda que os sapatinhos de cristal nao se quebrassem, aposto como os pes da Cinderela tiveram que ficar de molho por um bom tempo para cicatrizar as bolhas que com certeza surgiram depois de horas de rodopios no salao..
E eu sempre achei a Madrasta Ma da Branca de Neve muito mais bonita que ela!

Marco Antonio Zanfra disse...

É mesmo, Cíntia: aquela beleza madura, imponente... me lembrava minha tia Ana Flora!

Gleydson disse...

Oi Zanfra! Isso sem contar que a maioria dessas historinhas "pra criança" são recheadas de crueldade! O Lobo Mau degusta a vovozinha e o caçador tira a vovozinha VIVA lá de dentro. Imagina o sufoco que a velha passou? Rerererererere...

Tem até um filme da Branca de Neve com a Sigourney Weaver que faz uma versão mais "realista" da fábula (http://www.imdb.com/title/tt0119227/). Filme de terror, claro!

Abraços!

Cintia disse...

hahaha.. no conceito ou no fisico?

Marco Antonio Zanfra disse...

No físico, claro! Sua mãe nunca teve nada de bruxa má(eheheh)!

Carlos Martí disse...

Tenho por certa a versão de que a expressão "fueron felices y comieron perdices" faz referência ao privilégio de poder levar à mesa alimentos requintados, reservados à nobreza ou à realeza e a que muito poucos podiam aspirar, em determinada etapa da história espanhola. Mais do que isso, intimamente ligado a uma atividade elitista como a caça, de alta carga simbólica. E ainda, incluído no pacote de felicidade absoluta a que nos acostumaram desde criancinhas (não só aos espanhóis, mas a todo o ocidente) do que fazem parte:
- o casamento com pompas e circunstâncias;
- uma mesa farta de iguarias;
- um castelo;
- uma prole concebida ao lado de um príncipe azul e com os quais poder freqüentar de forma exemplar, a santa igreja.

Quanto ao livro é genial e desde que ouvi uma entrevista das autoras no rádio, estou pretendendo comprá-lo, por inivador e por ser um seguidor da ilustração de publicações infantis, apesar de que o livro em questão não seja exatamente infantil.
Esperando poder ter sido útil, volto a submergir nas profundezas multicoloridas das bolinhas.
Um abraço.

Marco Antonio Zanfra disse...

Grande Carles! Pena que você prefira as piscinas de bolinhas à presença mais constante em nosso blog!

Cintia disse...

Estou meio que boiando nessa piscina de bolinhas.. sem trocadilhos..

Marco Antonio Zanfra disse...

Está no último trecho do blog, quando peço que Carlos Marti nos explique sobre o final dos contos de fada na Espanha, mas justifico que ele talvez não consiga escrever por estar envolvido em muitas atividades, ou "mais mergulhado em afazeres do que uma criança numa piscina de bolinhas".
Falar em piscina de bolinhas, sabe que a Mayara quase se afogou numa?!

Cintia disse...

piscina de bolinha de good? haha

Marco Antonio Zanfra disse...

Você não conhece as piscinas de bolinhas? São aqueles recintos fechados (em formato de piscina, mesmo), nos parques infantis, cheios de bolinhas plásticas coloridas. As crianças pulam lá dentro e afundam. Nunca brinquei numa, mas parece divertido.

Era uma vez... disse...

Um belo jovem que se apaixonou por uma linda garota.Aproximou-se a custo e pediu-a em casamento.Ela não aceitou.E ele viveu feliz para sempre:Tomando quantas cervejas queria,sem sogra,jogando futebol com os amigos,etc.

Que alívio disse...

Achei que a minha estadia na casa do meu dileto irmão tinha sido a gota d'água no nosso relacionamento familiar.Cansei tanto a sua beleza que ele resolveu riscar-me da sua vida,começando pelo blog.Qual não foi o meu alívio ao perceber que o que ocorreu na verdade foi um atraso.Continuamos irmãos queridos,né.Oba!Oba,né Ma?

Marco Antonio Zanfra disse...

Você ficou um dia a menos do que no ano passado... Por que esta seria a gota d'água?

Vico disse...

Tem razão o "era uma vez...": você até pode casar-se e viver feliz para sempre com sua mulher, desde que morem em casas separadas e tenham vidas separadas. O que acaba com o amor - nas histórias reais ou nos contos de fada - é a rotina.

Kafka disse...

"Cenicienta" é a tradução para Cinderela?
Que coisa!
Cinderela parece uma coisa bem bonitinha.
Cenicienta parece uma coisa estragada, que fede.

Carlos Martí disse...

Na verdade, "Cinderela" não é o nome original do personagem no Brasil e sim uma imposição dos Estudios Disney quando do lançamento do filme "Cinderella", já que anteriormente ela era chamada Gata Borralheira, de "borras" ou seja as cinzas de uma lareira ou um fogareiro. "Cinder", originário do francês "cendre" também significa cinza. Em español a tradução é "ceniza" e daí "Cenizienta" é tem o mesmo significado. Para os braileiros a palavra Cinderela acaba sendo vazia de sentido etmológico e repleta de sentido afetivo, como as músicas do pop americano que a gente dançava romanticamente nos bailinhos, muitas vezes sem saber que a letra falava de um genocídio ou da luta pelos direitos humanos. Obviamente o nome do conto, em qualquer dos idiomas faz referencia à fase mais amarga e "gris" da história. E para os meninos espanhóis tem também um significativo afetivo.

Marco Antonio Zanfra disse...

Meu Deus! Dá vergonha da minha ignorância diante de tanta erudição!
Em tudo, só não concordo com uma coisa: nos bailinhos dos meus 15 anos, romantismo era o que menos havia durante a, digamos, troca de afetividade com as meninas...
Aliás, tocava música?

Carlos Martí disse...

Impressão minha ou no post anterior tivemos comentário das protagonistas?
Esperemos ansiosos as presenças de Nunila e Myriam, então.

Marco Antonio Zanfra disse...

Não entendi.

Carlos Martí disse...

Refiro-me ao comentario do trio Solange, Cleonice e Priscila no post "Maior que a barriga" e que segundo uma simples regra de tres seria igual à participação das autoras de "La cenicienta que no queria comer perdices" no atual...

Marco Antonio Zanfra disse...

Regra de três? Eu prefiro atribuir aquele comentário à gaiatice de alguém que não consegui identificar. É claro que não são as protagonistas do episódio de Porto Velho, como também é claro que as autoras de La Cenicienta... não nos dariam a honra de sua companhia.

Vico disse...

Já pensou!? As autoras escrevem um comentário em espanhol e nós, para felicidade máxima, ainda poderemos contar com a tradução do Marti!!

Ricardo Câmara disse...

Prezado Zanfra;
Não concordo com o desvio original das grandes obras infantis. Nós seres humano, temos dois ciclos, um criança outro adulto.Um conto de fadas é repleto de imaginações que faz a criança criar suas fantasias em seu mundo pueril onde nele, se cria personagens do bem e do mal e o desfecho sempre tende para um final feliz em seu território autista. Já na fase adulta,os desafios a enfrentar, as armadilhas que são impostas no caminho,as traições, as decepções e todos os obstáculos na trajetória da vida,geralmente, se tornam contos reais cujos epílogos nem sempre enaltecem a singeleza da "frase felizes para sempre". Adulterar uma obra literária é falta de inspiração do autor, pois nesse mundo virtual onde não há mais crianças e sim meninos com mentalidade adulta, só pode resultar nisso, a falta de criatividade! Para esses autores da "modernidade", sugiro um livro de cabeceira, "O Pequeno príncipe"- Antoine de Saint-Exupéry.

Anônimo disse...

Eu li o Pequeno príncipe e achei ma-ra-vi-lho-so.
Beijim.
A miss

Carlos Martí disse...

Obviamente, os contos de fadas fazem parte de um gênero literário que responde a circunstâncias culturais e sociais de uma determinada época em que uma camada da população plebéia aspirava e sonhava em ser príncipes e princesas, algo impossível de realizar a não ser no plano imaginário. Essa estrutura recorrente e o maniqueísmo sempre latente aproximam aqueles contos da telenovela latino-americana. Longe de ter funções educativas, as origens do conto chamado de fadas, estão associadas ao simbolismo, ao contraponto entre o bem e o mau, a bondade e a maldade, o rancor e o perdão e outros sentimentos antagônicos, que normalmente convivem em cada um de nós, mas que esses formatos narrativos com objetivos populares costumam personificar e indivudualizar. Algo pouco real, mas legítimo quando o narrador precisa transmitir mensagens diretas, sobretudo aquelas dirigidos a públicos com baixo nível cultural. O modelo de todos eles é a Bíblia, provavelmente o primeiro meio de comunicação de massa que buscava difundir um determinado estilo de vida e uma moral a populações heterogêneas quanto à ideologia e predominantemente analfabetas. Esses mesmos roteiros e relações que aparecem nas parábolas, voltam a aparecer nos contos medievais e mais recentemente, nas novelas televisivas. Claro que não se pode generalizar. Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll não segue a mesmice. Alguns contos russos conseguem chocar o leitor comum, mais pela moral à que não estamos acostumados do que pela pretensão de inovar. Já com "La cenicienta que no queria comer perdices" suas autoras, mulheres de uma geração educada sob dogmas conservadores, acostumadas a ser enquadradas em papéis limitados e subjugados, pretende manifestar a necessidade de ruptura das amarras de uma sociedade tolhedora, principalmente quando se trata de "princesinhas", tão irreais como enganadas.

Carlos Martí disse...

errata: "entre o bem e o mal"