segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Uma cela do tamanho do mundo

Quando o juiz Lalau foi beneficiado pela prisão domiciliar – regalia que lhe foi garantida graças à idade avançada e à precariedade da saúde – aposto que fez mentalmente um roteiro de onde passaria cada noite de sua pena, nos incontáveis aposentos de seu castelo no Morumbi:
- às segundas-feiras, estarei no salão do home teather do terceiro pavimento, próximo às termas, degustando as óperas de Wagner, Puccini e Rossini, além dos clássicos do barroco alemão;
- às terças-feiras, dormirei junto às ameias da muralha norte, contemplando o mar de mansões que se espraiam até o horizonte do feudo, embalado pelos ventos brandos que sibilam pelas seteiras;
- às quartas-feiras, melhor escolher o salão oval de jogos e dormir sobre o mármore da mesa de billiard, como forma de corrigir eventuais desvios posturais, comuns na vida carcerária;
- às quintas-feiras, buscarei o andar térreo, próximo à ponte levadiça, para dormitar ouvindo o murmurar das águas do fosso, singrado pelo nado silencioso dos crocodilos que o habitam;
- às sextas-feiras, dias mais quentes, procurarei o frescor do subsolo, na face leste, junto à adega subterrânea, próximo aos vinhos de Sauvigny, que ninguém é de ferro...

Da mesma forma, guardadas as devidas proporções, o sem-teto Nelson Renato Danuzo deve ter esboçado roteiro semelhante, ao ouvir que havia sido também condenado à prisão domiciliar:
- às segundas-feiras, procurarei a marquise do antigo Hotel San Raphael, na São João, ouvindo o alegre alarido da fauna alternativa que frequenta o largo do Arouche;
- às terças-feiras, se o dia estiver bom, dormirei ao relento na praça da Sé, embalado pelo relaxante som da fonte sobre a estação do Metrô, diante do fórum criminal;
- às quartas-feiras, dia propício às massas e carboidratos, procurarei guarida nos baixos do viaduto da Treze de Maio com a Brigadeiro Luiz Antônio, ficando o mais próximo possível das pizzarias do Bixiga;
- às quintas-feiras, nada como procurar o aconchego do coreto da praça da República, ouvindo o grasnar dos marrecos do lago e o cricrilar sonolento dos grilos em volta;
- às sextas-feiras, dia de agito, buscarei refúgio nos baixos do elevado Costa e Silva, imediações da praça Marechal Deodoro, contando com a prodigalidade da boemia do baixo clero para garantir o sustento no fim de semana;
- aos sábados e domingos, destino incerto: as fraldas do pico do Jaraguá, os portões do Pacaembu, o aconchego subterrâneo do monumento ao Grito do Ipiranga, os baixos do monumento ao Imigrante na 23 de Maio, o vão do Masp na avenida Paulista... ou outro cantinho qualquer, mais urbano ou bucólico, que meu lar é o mundo!

Guardadas as devidas proporções, a prisão domiliciar do Lalau pode ser mais aconchegante e confortável, mas a do morador de rua Danuzo é incontavelmente mais espaçosa.

7 comentários:

Elton Andrade disse...

O Brasil está, realmente, muito à frente do seu tempo quando de trata dos Três Poderes.

Anônimo disse...

É a volta dos que não foram...
(josé luiz teixeira)

Marco Antonio Zanfra disse...

Por falar na volta dos que não foram, volta quando?

cilmar machado disse...

Prisão domiciliar para sem teto?

Ignorância ou sarcasmo do juíz?

Era só o que faltava!

Marco Antonio Zanfra disse...

Foi ignorância, Cilmar: o advogado do réu não informou nos autos que ele era morador de rua...

morani disse...

Amigo Zanfra:

Eis-me presente após tanto tempo. É sempre renovado prazer ocupar este espaço para comentar suas inestimáveis crônicas.
Nosso Brasil é endêmico em matéria de corrutos e corrupções. Será que os brasileiros perderam a vergonha e encaram tudo isso como normal? O Lalau anda protegido pelas paredes de seu castelo. Essa vida intra muros parece lhe ser agradável e de muito conforto.
Já Renato Danuzo, o sem teto, tem sobre sua cabeça o céu, nem sempre estrelado, mas é livre para ir aonde queira, e só deve à sociedade o fato de não ter uma ocupação digna que o possa manter sem que cause ônus às organizações sociais. Sobre quais das duas figuras recai maior dano? Quem causou maior dano ao país?
Nem um deles; fomos nós, que permitimos tais desmandos a quem deveria dar o exemplo da lisura que um cargo como o de juiz exige.
Fazemos como os avestruzes e nos damos por satisfeitos. Abraços.

Janaina Guliato disse...

só para dizer que adorei a crônica do morador de rua. Foi uma camparação e uma sacada muito legais. Já sou sua fã.