Quando o juiz Lalau foi beneficiado pela prisão domiciliar – regalia que lhe foi garantida graças à idade avançada e à precariedade da saúde – aposto que fez mentalmente um roteiro de onde passaria cada noite de sua pena, nos incontáveis aposentos de seu castelo no Morumbi:
- às segundas-feiras, estarei no salão do home teather do terceiro pavimento, próximo às termas, degustando as óperas de Wagner, Puccini e Rossini, além dos clássicos do barroco alemão;- às terças-feiras, dormirei junto às ameias da muralha norte, contemplando o mar de mansões que se espraiam até o horizonte do feudo, embalado pelos ventos brandos que sibilam pelas seteiras;
- às quartas-feiras, melhor escolher o salão oval de jogos e dormir sobre o mármore da mesa de billiard, como forma de corrigir eventuais desvios posturais, comuns na vida carcerária;
- às quintas-feiras, buscarei o andar térreo, próximo à ponte levadiça, para dormitar ouvindo o murmurar das águas do fosso, singrado pelo nado silencioso dos crocodilos que o habitam;
- às sextas-feiras, dias mais quentes, procurarei o frescor do subsolo, na face leste, junto à adega subterrânea, próximo aos vinhos de Sauvigny, que ninguém é de ferro...
Da mesma forma, guardadas as devidas proporções, o sem-teto Nelson Renato Danuzo deve ter esboçado roteiro semelhante, ao ouvir que havia sido também condenado à prisão domiciliar:
- às segundas-feiras, procurarei a marquise do antigo Hotel San Raphael, na São João, ouvindo o alegre alarido da fauna alternativa que frequenta o largo do Arouche;
- às terças-feiras, se o dia estiver bom, dormirei ao relento na praça da Sé, embalado pelo relaxante som da fonte sobre a estação do Metrô, diante do fórum criminal;
- às quartas-feiras, dia propício às massas e carboidratos, procurarei guarida nos baixos do viaduto da Treze de Maio com a Brigadeiro Luiz Antônio, ficando o mais próximo possível das pizzarias do Bixiga;
- às quintas-feiras, nada como procurar o aconchego do coreto da praça da República, ouvindo o grasnar dos marrecos do lago e o cricrilar sonolento dos grilos em volta;
- às sextas-feiras, dia de agito, buscarei refúgio nos baixos do elevado Costa e Silva, imediações da praça Marechal Deodoro, contando com a prodigalidade da boemia do baixo clero para garantir o sustento no fim de semana;
- aos sábados e domingos, destino incerto: as fraldas do pico do Jaraguá, os portões do Pacaembu, o aconchego subterrâneo do monumento ao Grito do Ipiranga, os baixos do monumento ao Imigrante na 23 de Maio, o vão do Masp na avenida Paulista... ou outro cantinho qualquer, mais urbano ou bucólico, que meu lar é o mundo!
Guardadas as devidas proporções, a prisão domiliciar do Lalau pode ser mais aconchegante e confortável, mas a do morador de rua Danuzo é incontavelmente mais espaçosa.
7 comentários:
O Brasil está, realmente, muito à frente do seu tempo quando de trata dos Três Poderes.
É a volta dos que não foram...
(josé luiz teixeira)
Por falar na volta dos que não foram, volta quando?
Prisão domiciliar para sem teto?
Ignorância ou sarcasmo do juíz?
Era só o que faltava!
Foi ignorância, Cilmar: o advogado do réu não informou nos autos que ele era morador de rua...
Amigo Zanfra:
Eis-me presente após tanto tempo. É sempre renovado prazer ocupar este espaço para comentar suas inestimáveis crônicas.
Nosso Brasil é endêmico em matéria de corrutos e corrupções. Será que os brasileiros perderam a vergonha e encaram tudo isso como normal? O Lalau anda protegido pelas paredes de seu castelo. Essa vida intra muros parece lhe ser agradável e de muito conforto.
Já Renato Danuzo, o sem teto, tem sobre sua cabeça o céu, nem sempre estrelado, mas é livre para ir aonde queira, e só deve à sociedade o fato de não ter uma ocupação digna que o possa manter sem que cause ônus às organizações sociais. Sobre quais das duas figuras recai maior dano? Quem causou maior dano ao país?
Nem um deles; fomos nós, que permitimos tais desmandos a quem deveria dar o exemplo da lisura que um cargo como o de juiz exige.
Fazemos como os avestruzes e nos damos por satisfeitos. Abraços.
só para dizer que adorei a crônica do morador de rua. Foi uma camparação e uma sacada muito legais. Já sou sua fã.
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