sexta-feira, 16 de março de 2012

Tarda e falha

Que houve com aquela máxima de que a Justiça tarda mas não falha?
O que houve com aquele velho preceito jurídico de que a Constituição está acima de todas as leis?
Em que alfarrábio está escrito que o jeitinho brasileiro pode tornar aceitável, justamente pelo bastião máximo de defesa da Carta Magna, um ato inconstirucional?
Creio que a meia dúzia de meus sete ou oito leitores deve estar tão indignada quanto eu com o Supremo Tribunal Federal, que demorou quase 53 anos para considerar inconstitucionais as concessões de terra feitas pelo governo do Mato Grosso, mas julgou “improcedente” a ação que questionava essas concessões, em nome de uma tal de “segurança jurídica”. Em outras palavras, consideraram ilegal, mas passível de se dar “um jeitinho”.
Tenho por princípio votar contra quando o ministro Marco Aurélio de Mello vota a favor, mas sou forçado a concordar com ele quando manifestou sua estranheza com a postura de seus pares, que leva ao raciocínio de que “a Constituição Federal não reflete um documento rígido, mas flexível, que deva ser colocada em plano secundário ante uma situação de fato, em detrimento de princípios constitucionais”.
Tem razão: não é preciso uma PEC para mudar a Constituição; basta criar uma situação que se torne irreversível porque a morosidade da Justiça tornou impraticável revertê-la.

Para os estimados e inesquecíveis leitores que não acompanham o caso, um breve resumo: no início dos anos 50, o Estado de Mato Grosso (antes ainda de ser desmembrado) concedeu uma área de 200 mil hectares – cerca de 2 mil quilômetros quadrados, o equivalente 10% de Sergipe – a 20 empresas colonizadoras (entre elas a Camargo Corrêa – e não estou citando o nome por “perseguição”).
Pela Constituição em vigor na época, a de 1946, a concessão de áreas com mais de 10 mil hectares deveria ser aprovada pelo Senado (a partir da Constituição de 88, o limite baixou para 2,5 mil hectares e a aprovação tem de passar também pela Câmara), mas o governo do Mato Grosso ignorou a lei. Alegou que os lotes, não superiores a mil hectares, seriam repassados a famílias de agricultores e que as empresas colonizadoras apenas cuidariam do repasse a da infraestrutura.
Em 1955, foi instituída uma CPI no Senado, que concluiu pela ilegalidade das concessões. Em junho de 1959, chegava ao STF e Ação Cível Originária 79, que agora, meio século depois, chega a um resultado.
O relator, Cézar Peluso – que tinha 16 anos quando a ação chegou ao Supremo – votou “pela inconstitucionalidade da alienação das terras, pela via de concessão de domínio, sem prévia autorização legislativa”, mas ressalvou que a situação na área tornou-se irreversível, porque é ocupada, hoje, por cidades, casas, estradas, propriedades rurais, indústrias, estabelecimentos comerciais e de serviços, abrigando dezenas de milhares de pessoas. Por isso, propôs a convalidação da operação, invocando o princípio da segurança jurídica.
Ele não deixa de ter razão nesse aspecto. Mas cabe uma indagação: a situação chegaria a esse grau de irreversibilidade se o julgamento da ação não tivesse demorado tanto tempo – uma vez que a concessão, desde o início, aparece visivel e claramente ilegal?

Que me perdoem os mais puritanos, mas o STF – descontados os três votos divergentes – acabou de endossar a “constituição camisinha”, se é que me entendem...

3 comentários:

cilmar machado disse...

O assunto é da área jurídica, a qual foge do meu entendimento, mas com a clareza de sua crônica-desabafo, dá perfeitamente para concluir que, na época dos fatos (década de 50), a Constituição brasileira era outra, mais condescendente e voltada aos interesses políticos e econômicos de nossos dirigentes. Daí a doação do governador do Mato Grosso de então. Passaram-se décadas, cidades, estradas, lares, a civilização enfim, tomaram conta das terras doadas, criando-se um impasse jurídico (leia-se, um tremendo abacaxi jurídico), mais ou menos na base do se correr o bicho pega e se ficar o bicho come. Foi com esse quadro que o Supremo teve que se manifestar e, a meu ver, tomou a mais sensata das medidas. Se você aplicasse a Constituição de 88 ao pé da letra poderia ser injusto e até desumano. O único senão, com o qual concordo com você Zanfra, foi a excepcional e injustificada morosidade para que o abacaxi fosse finalmente descascado...

Marco Antonio Zanfra disse...

A Constituição de 1946 não era "mais condescendente", Cilmar: na época, era proibido repassar áreas superiores a 10 mil hectares sem a anuência do Senado, mas o governo do Mato Grosso simplesmente ignorou esse ditame legal.

Blog do Morani disse...

Zanfra:

Há culpados e nenhuns culpados! É aquela nossa velha conhecida de sempre: morosidade de julgamento às questões da verdadeira condição de "Urgência urgentíssima" e da "legalidade ou não" do ato permissivo. Essas coisas só funcionam quando se julgam as invasões pelos sem terra. Tiveram suas razões os que agora há pouco estiveram em greve e em reclamos aos gastos com obras faraônicas aos estádios de futebol. Moradias? Para quê? A quem? Aos pobres sem teto? Ora bolas, que comam "brioches" e chupem os dedos!