segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Da natureza humana

Sexta-feira à noite fui levar minha assistente social predileta para medir a pressão na policlínica municipal, aqui em Florianópolis, e, enquanto esperava a patroa ser atendida, fiquei observando o movimento e as vicissitudes humanas do lado de fora.
Uma de minhas primeiras observações foi que o estacionamento estava concorrido, mas não lotado. Portanto, havia lugar para todos. E, portanto, era inexplicável que alguém dispensasse uma vaga e fosse estacionar na frente de um portão onde havia uma placa com uma letra "E" preta, cruzada por uma faixa vermelha, cujo significado até crianças da pré-escola sabem.
Pois alguém o fez.
Depois de parar, trancar o carro e acionar o alarma, com ar de quem tinha cumprido seu dever, o motorista foi interpelado por uma funcionária da faxina: “Moço, naquela garagem ficam as ambulâncias. O senhor não pode parar o carro ali, porque atrapalha a saída das ambulâncias.” Enquanto o indigitado cidadão voltava, cheio de dedos e salamaleques, para corrigir seu erro, a mulher comentava com suas vassouras: “Tem gente que não tem noção, mesmo!”
Pois eu acho que ela acertou no esfregão: o que poderia ser além de falta de noção? É claro que o indivíduo não parou na frente do portão pelo simples prazer de transgredir, ou pelo ignóbil poder de impedir que uma ambulância pudesse sair e socorrer algum necessitado. Mas porque faz parte da natureza humana. Sem qualquer dolo, sem má-fé, faz parte da natureza humana atrapalhar os outros. Não ganham nada com isso, desculpam-se sinceramente depois de constatado o embaraço, mas não deixam de fazer. Porque, como naquela anedota do escorpião que aferroa o sapo que o ajudava a atravessar o rio, faz parte de sua natureza.
Quando eu ainda era vítima do transporte coletivo, sofria praticamente todos os dias com esse desvio de comportamento: corria para pegar melhor lugar na fila dentro do terminal de ônibus, mas quase sempre esbarrava em alguém que parava na minha frente, bem na boca da catraca, para abrir a bolsa e procurar o cartão magnético que lhe garantiria o acesso. Podia fazer duas horas antes, ou dois minutos antes, mas bloqueava a passagem de todo mundo e deixava para procurar o cartão na frente de umas quinze ou vinte pessoas que vinham atrás, cheias de pressa como eu.
É claro que não fazia isso de sacanagem. É claro que também não age com intenção escusa uma pessoa que entra ou sai de uma repartição pública movimentadíssima e para na porta – ou para olhar o movimento lá dentro, ou para ver se está chovendo lá fora – e bloqueia por largos instantes o tráfego de outros cinco ou seis que vêm atrás dela. Ou que vai preencher um formulário num balcão e escolhe justamente aquele segmento basculante, por onde entram ou saem os funcionários, para esparramar a papelada.
É só prestar atenção: sempre vai ter alguém, na nossa frente e na maior das inocências, fazendo alguma coisa que vai quebrar o ritmo do que nós estivermos fazendo, e nos atrapalhar, ainda que por alguns poucos instantes.

Confesso que criei essa teoria de que atrapalhar os outros faz parte da natureza humana não faz muito tempo. Confesso também que, embora pareça coisa de quem não tem muito o que fazer, foi a melhor maneira que encontrei para me irritar menos com esse poder de embaçar os outros que a humanidade em geral tem.

23 comentários:

Cintia disse...

Primo, sou neurastenica como voce!!
Aqui tem aqueles que param pra conversar bem na "boca" da escada, ou na porta do banheiro, ou na frente do bebedouro - no exato momento em que voce precisa usar uma dessas coisas.. E fila de supermercado? Voce escolhe a fila mais curta, mas nao falha nunca! Tem sempre uma senhora cheia de coupons de descontos (aqui e muito comum)recortados de revistas ou folhetos de propaganda..e la se vai a vantagem da fila curta! Verdade, o inferno sao os outros :) So queria saber em que ocasiao as pessoas pensam isso de mim, ja que o fazemos na mais pura inocncia e, logico, nao me lembro..

Gleydson disse...

E aquela velhinha com o carrinho de compras que para (já sem acento) bem na entradinha da escada rolante? :-)))

Na verdade acho que tem mais a ver com o "poder" humano de assumir que o outro pensa como ele. O mundo não seria melhor se todo mundo fizesse o que você espera que eles fizessem?

Talvez seria muito chato, mas enfim, outro assunto.

Abraços!

Marco Antonio Zanfra disse...

Se as pessoas fizessem o que eu espero que elas façam, as ruas teriam uns três ou quatro circulando, se muito!

Marco Antonio Zanfra disse...

Aliás, se Molière me conhecesse, sua peça "O Misantropo" seria um tantinho mais contundente!

Vico disse...

E Deus que me livre de ser um desses três ou quatro que vão sair na rua ao mesmo tempo que você!

José Luiz Teixeira disse...

Zanfra, uma vez fui atravessar aquela rua que fica onde era o Mappin e a Light (como é o nome mesmo???)e um cara me atrapalhou; desviei dele, um segundo esbarrou em mim;continuei e um terceiro tambem me atrasou. Parei, puto da vida e, nesse mesmo segundo, passou um ônibus a toda velocidade por onde eu iria atravessar. O farol estava fechado para mim e eu não havia percebido. Ia atravessando sem olhar.
Explique.

Blog do Morani disse...

Cíntia falou tudo o que acontece, dando apôio ao seu comentário, Zanfra. Realmente, se eu entro numa fila, ainda pequena de supermercado, não posso adivinhar que uma senhora, à frente, vá ter dificuldades para abrir uma bolsa, procurar os cartões de crédito entre outras tantas bugigangas, que as mulheres costumam carregar, para pagar apenas dois ítens. Então pairam sempre algumas dúvidas e se inicia entre a freguesa e a jovem da caixa um diálogo enfadonho. Por isso abri mão aos cartões pagando tudo a dinheiro. Não desejo ser olhado atravessado por ninguém, nem ser empecilho aos que vêm logo atrás. Não são os seres humanos culpados e, sim, as modernidades e as facilidades de crédito para pessoas que não dispõem de grana ao vivo. Culpemos as empresas que nos acenam com tais facilidades fictícias, porém. Vico e Geydson também têm razão, e Molière não desconheço, mas desconheço a obra "O Misantropo", que deve ter sido um indivíduo melancólico sobremaneira.

cilmar machado disse...

O que muitos aqui têm é uma doença própria das grandes cidades! Desse mal, não padeço! Como é bom morar-se no interior. Aqui, a ida ao Supermercado é um acontecimento. A mulherada aproveita para colocar a conversa em dia e NINGUÉM se irrita se alguém atrasa na fila do Caixa, que por sinal, não é tão grande assim. O trânsito é tranqüilo e não há possibilidade de alguém se esbarrar com outrem, pois os passeios são largos e o número de pedestres não é tão acentuado. A agitação do dia-a-dia, nas metrópoles, cria o ser irritadiço, neurastênico, exigente e impaciente ao extremo. Podem discordar, mas viver no interior é muito mais salutar. Pena que as oportunidades de trabalho e de realização são bem menores...

Marco Antonio Zanfra disse...

Engraçado: minha assistente social predileta disse ontem a mesma coisa, Cilmar. É tudo, segundo ela, uma questão de ritmo de vida, e não uma predisposição genética que as pessoas têm de atrapalhar a vida das outras.

Blog do Morani disse...

Cilmar Machado:

Eu também vivo em uma cidade serrana e do interior, que posso considerar como "pequena" mesmo com seus quase 200.000 hab.
Temos hipermercados, mas as filas foram instituidas desde o lançamento do cruzado de Sarney e aumentou ao lançamento do Real! Ai piorou tudo!
Mas os tais cartões - dinheiro plástico - veio dificultar tudo. Há pessoas que compram meia duzia de pães e na hora de pagar sacam o bendito cartão - têm uma fileira deles nas carteiras - e liquidam seu débito passando-o na "maquininha" e, ainda, assinando papeletas do caixa. Isso leva mais tempo do que pagar em dinheiro. Triste ver filas imensas em bancos, padarias, super e hipermercados. Minha Nova Friburgo,RJ, está assim, infelizmente.

cilmar machado disse...

Zanfra:
Talvez a opinião de sua esposa seja a mesma que a minha porque nós ambos somos assistentes sociais. A visão é outra, mais condescendente e conciliadora.
Morani: concordo com você. O dinheiro plástico não é nada prático! Seria necessário criar-se uma maneira menos burrocrática de serem utilizados.

Eliz disse...

Oi Zanfra,

Adorei o tema desta semana, muito interessante poder ver as coisas de outra forma... Pensando assim, temos mais empatia com os outros, e conseguimos respeitar os mais variados "ritmos de vida", principalmente, aqueles que tem problema com mobilidade.

Cintia disse...

Agora a geografia muda as coisas mesmo..
Aqui nos EUA, quase ninguem usa dinheiro vivo, e quando alguem aparece com esses papeis para pagar uma conta, ai sim que a fila empaca! Enquanto o aixa vai passando as mercadorias pelo "leitor", eu ja passei meu cartaozinho na maquininha, ja digitei munha senha e ate marquei se quero sacar dinheiro. Quando o caixa acaba de passar os produtos, so aperto o botao "OK" e pronto!

Marco Antonio Zanfra disse...

Uau!

Enéas disse...

Conforme-se, meu caro Zanfra, e não procure muita explicação. Isto acontece desde que surgiu o segundo habitante neste mundo.

Serafim disse...

Caro Zanfra

Faça como eu e o Cilmar,mude-se para o Interior.Aqui em Cerquilho (SP) é um deleite.Não tem farol vermelho pra te aborrecer,as ruas parecem avenidas,as casas não tem muros altos, o vizinho te dá frutas do pomar,etc.Dizem que aqui é tão sossegado que pra morrer de repente leva três dias.
Outra coisa muito importante é que as velhinhas já não ficam contando as moedinhas,elas aceitam balas de troco.
Mude-se amigo e viva feliz enquanto é tempo.
Abraços

Unknown disse...

Oi Zanfra,
"Tolerância zero, nunca mais". Que bom que o exercício da tolerância tem te acompanhado. Acho que a idade pode ter uma certa influência, mas não é só isso com certeza. Tenho me policiado muito para não ficar estressado com estas situações. Acredito que mais do que da natureza humana, esse hábito é uma constante na nossa população que tem pouco incentivo a ter uma atitude onde o coletivo deva prevalecer sobre o individual, ou seja, mais educação. Fico muito contente em saber que inaugurasse uma fase light na tua vida.

Um forte abraço,
Jacinto.

Marco Antonio Zanfra disse...

Não, Jacinto, eu não inaugurei "fase light" nenhuma. Apenas arranjei uma válvula de escape para me estressar menos. Dizer "ah, coitadinho, não é culpa dele..." ajuda a ter menos sentimentos negativos em relação ao cara que está te atrapalhando.

Marco Antonio Zanfra disse...

Por falar em atrapalhar, vocês viram a cena do acidente entre dois ônibus no Rio, com 75 feridos? Pois está "na natureza" de alguns motoristas dirigir sem olhar pelo retrovisor, e isso pode trazer graves consequências. Se o motorista do carrinho branco - me pareceu um Celta - olhasse pelo retrovisor e visse um ônibus daquele tamanho crescendo atrás dele, certamente não pararia no sinal amarelo, como parou.

Kafka disse...

E pensar que Florianópolis já foi considerada um paraíso para quem não suportava mais a correria das grandes cidades. Agora, os caras sugerem que você se mude para o interior para fugir da agitação da antiga Ilha da Magia. Que coisa, né?

Marco Antonio Zanfra disse...

Repondendo ao José Luiz Teixeira, lá em cima:
1 - O nome da rua é Xavier de Toledo
2 - O fato de os esbarrões terem evitado seu atropelamento só reforça minha tese de que as pessoas não nos atrapalham de propósito: se houvesse má-fé, você seria empurrado para debaixo do ônibus.

Gennara Vitti disse...

Não sou assistente social, mas também tenho uma visão conciliadora a respeito do comportamento humano: todos têm seus limites, físicos e mentais, todos têm seus ritmos, suas necessidades e sua capacidade de absorver e processar informações. Para que a coexistência seja ao menos suportável, é preciso que aprendamos a tolerar isso. É preciso aceitar as limitações dos outros. Mesmo porque ninguém tem condições - e nem mesmo é obrigado a isso - de viver 24 horas por dia agindo para agradar os outros.

Carlos Martí disse...

... ou seja, devemos desenvolver a capacidade à empatia.