segunda-feira, 22 de março de 2010

A menina 23.225

Quando criança, eu tinha medo de passar pela frente do Hospital Psiquiátrico Pinel, em Pirituba. Embora da avenida Raimundo Pereira de Magalhães fosse possível ver apenas o bloco da portaria e o prédio da administração, no alto, parcialmente encoberto por árvores frondosas, eu imaginava que por trás daquela aparente quietude houvesse um batalhão de loucos furiosos prontos a pular em meu pescoço e carregar-me sabe-se lá para que profundezas. Naquele tempo, eu não via diferença entre o que seria o inferno cristão e o espaço onde a insanidade estava confinada.
O medo de passar pelas cercanias do Juqueri era um pouco maior, porque eu tinha na imaginação que era para lá que todo garoto de vida torta seria levado, mais cedo ou mais tarde, para aprender a comportar-se como os adultos exigiam. Mas como a gente tinha que pegar o trem para ir ao Juqueri, em Franco da Rocha, o Pinel acabava parecendo mais assustador, por ser mais próximo.
Como repórter, conheci amplamente as instalações do Juqueri – tanto do hospital psiquiátrico quanto do manicômio judiciário – e vi que, embora não fosse nenhum recanto aprazível, era bem diferente daquilo que eu imaginava que fosse. No Pinel, porém, nunca entrei. O máximo que me permiti, já adulto, foram dez a quinze passos para além do portão, até a farmácia, no bloco da portaria, à procura de comprimidos de carbamazepina, anticonvulsivante que me vi obrigado a tomar durante sete anos. Por isso, não sei até hoje se por trás da quietude do prédio da administração há um inferno cheio de loucos furiosos prontos a pular no meu pescoço. E não sei até hoje se meu medo era justificado ou não.
Lembrei-me do mistério que continua sendo até hoje para mim o Pinel quando li na Folha de S. Paulo deste domingo a bela matéria sobre a adolescente que, mesmo não carecendo de internação, está há quatro anos e três meses confinada no hospital psiquiátrico, porque sofre de uma doença para a qual ainda não foi descoberta a terapia: o abandono. Ninguém a quer por perto, e por isso – por não ter para onde ir – ela está condenada a viver confinada num estabelecimento manicomial.
Identificada na matéria como “a menina 23.225” – o número de seu prontuário médico – ela foi internada aos 11 anos por apresentar transtornos de conduta: “inteligente, agressiva, indisciplinada, sem respeito, fria e calculista” foi a descrição que fizeram dela ao buscar ajuda médica. Nada de psicoses, esquizofrenias, paranóias. Os médicos viram que não era motivo de internação e deram-lhe alta. Mas para ir para onde?
Nem só a família não a quer. A direção do hospital tentou colocá-la em vários abrigos, mas não encontrou vaga em nenhum deles: o estigma Pinel provavelmente não recomende sua aceitação. "O isolamento social é extremamente prejudicial aos quadros de transtorno de conduta. O hospital psiquiátrico não é local para tratamento de longa duração. A paciente precisa ser encaminhada para serviço ambulatorial especializado para continuar seu tratamento e para que se promova sua reinserção na sociedade", diz o relatório de um setor de assistência psiquiátrica a adolescentes sobre a garota. Mas quem a quer?
Fico imaginando quantos loucos ou nem tanto estão por aí, esquecidos nos pinéis e juqueris da vida, porque ninguém quer assumir a responsabilidade de cuidar deles. Quem quer um transtorno por perto, se tem o Estado para assumir, ainda que mal e mal, a incumbência? Quantas mais “meninas 23.225” devem existir por aí, varridas para debaixo do tapete pela omissão familiar?

Não é um bom assunto para começar a semana?

* Longa vida ao casal Nardoni... atrás das grades!

24 comentários:

Blog do Morani disse...

Que sirva esse seu libelo como chamamento à responsabilidade do Estado de voltar os seus olhos vagos para os verdadeiros problemas de seres humanos afastados ao convívio social. Todavia, é mais cômodo esquecerem essas criaturas "doentes" de solidão num Juqueri ou num Pinel que arcar com as "despesas" correspondentes. Fazer o quê, se nossos Estado, em estado precário, precisa urgentemente de tratamento moral?

Cintia disse...

Estive quando crianca no Juquiri. Meu tio Heinz era dentista dos internos e nao sei por que cargas d'agua fui parar la.. Mas o fato e que nunca saiu de minha memoria a cena de um interno, cabeca raspada, montado a cavalinho num tronco caido de uma arvore, com um paninho entre as maos fazendo o movimento que se faria se estivesse lustrando um sapato.. E ele fazia aquilo com tanta felicidade! olhava pra gente sorrindo, para o tronco, para gente, para o tronco, com esfregadas vigorosas.. Nunca me saiu da cabeca.. Ele era feliz?
Estive tambem no Pinel, levando o meu pai na busca de tratamento parao alcoolismo, mas nao passei do ambulatorio..
Agora, a gente se adapta ao meio, entao o que dizer dessa menina - e de outros - que sao obrigados a assimilar todos aqueles codigos?
Que coisa...

Anônimo disse...

Prezado Zanfra
Triste...mas totalmente verdadeira...a loucura por causa da "solidão".Com esse diagnóstico...mas tomando sabe-se lá quantas "sossega leão",contrairá a doença de fato, por causa da própria medicação.Que o diga "Bicho de sete cabeças",baseado em fatos reais,né?
É....precisamos de olhares mais sensíveis por parte das próprias famílias e os organismos do Estado.
Quanto aos Nardoni.....concordo plenamente...que vivam felizes "para sempre" mas totalmente atrás das grades.Se houver algum voto a favor deles,trata-se de um louco no meio de nosotros.
sonia carotta
bjusssssssssss

Gleydson disse...

Que bizarro, hein... Credo! Se estamos falando disso em 2010, imagina o que acontecia uns 50 anos atrás?

Já ouvi falar de casos em que a pessoa é deficiente física e a família a considera "retardada" e a deixa confinada a um quarto pra sempre.

CREDO.

Anônimo disse...

Recordo-me que na União Soviética, muitos dissidentes eram tachados de "malucos' e internados em clínicas psiquiátricas. Uma vez, ouvi um político dizer assim: "O sujeito que não concorda com uma sociedade equalitária, onde todos são iguais, deve ser louco mesmo. Por isso é internado". Até hoje ão sei se ele estava falando sério ou sendo irônico.

Abs
José Luiz

cintia disse...

Assunto a parte.. seu livro ja esta pronto, arte, tudo? Ja tem ilustrador? Alguem para fazer a capa?
Ou ja esta tudo feito?

Marco Antonio Zanfra disse...

Meu livro deve entrar em processo de edição no final deste mês ou início de abril. Pronto, por enquanto, só tem o CD com o texto que eu entreguei quando estive na Brasiliense pela primeira vez, em setembro de 2008. Nesse CD, eu coloquei também quatro sugestões de capa, trabalhadas em cima de uma foto do cemitério real onde estariam cavadas na ficção as covas gêmeas. Quando o processo de edição começar, vamos ver o que será feito.

Vico disse...

Estou quase amarrando uma aposta que o casal Nardoni vai sair inocentado do julgamento, menos pela nossa torcida pelo contrário e mais pela fragilidade das provas, mesmo as periciais. O povo - ê racinha! - vai ficar com medo de condená-los. In dubita pro reo, né?

Sopa de fubá!Urgh! disse...

Ouvi da boca de um professor na universidade,de uma conduta pouco ortodoxa,para que se evitassem que os internos do juqueri comessem o veneno destinado a acabar com a infestação de ratos que assolava aquela instituição,nos seus tempos áureos,digo negros,pouco antes da sua quase total desativação.Serviram fartamente uma sopa de fubá,na qual ,sem dó,adicionaram quantidades generosas de laxante.Foi uma caganeira geral.Os loucos,pero no mucho,adquiriram horror ao fubá.Sendo assim,o veneno para ratos,pode ser misturado ao fubá e colocado em pontos estrátégicos do prédio,sem que,qualquer um,por mais varrido que fosse,se aproximasse.

Marco Antonio Zanfra disse...

Quanta crueldade lógica!

Gennara Vitti disse...

Não é só de "doidos" que a família quer se ver livre e empurrar a responsabilidade para o Estado. Com os drogados acontece a mesma coisa. A família prefere chamar a polícia para prender um drogado que esteja em seu seio do que tentar, ela própria, conseguir, através de diálogo, carinho e compreensão, com que esse familiar retome o caminho da lucidez. Quando não encontra lugar para mantê-lo sob a tutela do Estado, essa gente ou tranca ou acorrenta o pobre do viciado ao pé da cama.

Eliz disse...

Oi zanfra,

Esta situação me faz lembrar de uma entrevista em que o Paulo Coelho revela que foi internado pela família em uma clínica psiquiatrica aos 17 anos de idade em razão de frequentar aulas de teatro e ter um comportamneto "livre". O autor disse que sabia que não era louco, mas achava que, para ser um escritor, precisava passar pelo hospício. Quantas pessoas que são loucas e no entanto estão por aí cometendo suas loucuras, outras nem chegam a ser "muito loucas" mas estão em interndas como tal.

Marco Antonio Zanfra disse...

E quem foi o louco que deixou Paulo Coelho sair?!

Kafka disse...

Tá falando mal do Paulo Coelho? Quem dera seu livro as covas gêmeas vendesse o que vendem os livros dele e fosse publicado nos países que publicam os livros dele!

Marco Antonio Zanfra disse...

Quem dera...

Carlos Martí disse...

1. Anos mais tarde, constatamos que, contra sua própria receita e/ou vaticínio, ter passado pelo hospício não permitiu que Coelho chegasse a escritor.
2. Sobre a loucura e a sua definição, em cartaz, um Scorsese interessante (mais pretensioso e grandioso e muito inferior a, por exemplo, sua obra-prima "Taxi Driver"): "A ilha do medo".
3. Aproveito para perguntar à Cintia sobre a real repercussão da aprovação do plano previdenciário Obama por aí.

Marco Antonio Zanfra disse...

Pensei que você fosse falar alguma coisa sobre o Pinel, já que o manicômio ficava mais perto de sua casa do que da minha...

Marco Antonio Zanfra disse...

Quanto a A Ilha do Medo, já baixei na internet e vou assistir no sábado.

Carlos Martí disse...

Confesso ter-me esquecido completamente do Pinel e, ao ler seu texto, recordá-lo vagamente. Procurei na Internet, vasculhei a vizinhança no Google Maps e não consigo me lembrar. Por acaso, era perto daquela mansão dos marqueses ou algo assim? Estou ficando velho e tais lembraças aparecem como sonhos na minha cabeça. Ia escrever no post "pais e filhos", mas não tive ânimo. O dia que você publicou o texto sobre a longevidade de uma e outra geração, meu filho me representava na despedida do meu pai, aí no Brasil, à que não pude estar presente. Vou tentar escrever algo sobre isso no "A família mata". Abraço.

Marco Antonio Zanfra disse...

O Pinel fica na Raimundo Pereira de Magalhães, virando à esquerda na estação de Pirituba, em direção a Parada de Taipas e Perus, na metade do caminho entre a estação e a entrada para a Vila Zatt (local - a entrada - mais conhecido, em nossa época, como "barrancão").
Sinto muito por "seo" Salvador.

cilmar machado disse...

Em minha cidade temos o Hospital Psiquiátrico Clemente Ferreira, do Estado e também a Fundação Casa. Ambas instituições têm seu departamento de Serviço Social que promove a reintegração do assistido na comunidade. Há casos difíceis, como acredito ser da menina 23.225 e casos mais fáceis, mas TODOS são atendidos e assistidos. Muito me admira o pinel de sua crônica não contar com um serviço igual, pois também é estadual, não?
Será que não há vagas para assistentes sociais e psicólogos em tal instituição?

Marco Antonio Zanfra disse...

A estrutura deve existir, Cilmar. O problema, como relatado na matéria da Folha, é que menina não tem para onde ir. A mãe está presa, por roubo e tráfico; a avó não quis aceitá-la, na última tentativa, porque acabara de arranjar emprego com carteira assinada e temia perder a vaga se tivesse que arcar com a neta. A direção do Pinel tentou arrumar vaga em várias instituições, mas a garota foi rejeitada. E agora, para completar sua história de vida, parece que ela foi estuprada por um agente de segurança da instituição, funcionário terceirizado que está desaparecido. Ou seja, quando a vida começa torta, é muito difícil achar o rumo e não há assistente social que dê jeito.

Cintia disse...

Ai que tristeza a vida dessa menina..
Carlos: por enquanto a repercussão esta ainda na reacao dos Republicanos, Fox News and afins, usando a ignorancia popular como terreno para lancarem seus absurdos. Nao ha um debata sobre o plano em si, mas todo um esforco para nao deixar de jeito nenhum que Obama consiga consertar qualquer coisa. Eles preferem boicotar tudo desde que ele nao apareca de forma positiva. Agora estao partindo para ameacas aos que votaram a favor.. Me faz pensar que muita teta esta em jogo!

Ricardo Câmara disse...

Triste, muito triste o quadro dessa moça e de todos que sofrem de patologias mentais, a pior mazela que afeta o ser humano. Internar, talvez não seja a solução, tendo em vista a administração oral ou cutânea dos “tarjas-preta”, substituto da famosa “sossega-leão,” aplicada em épocas passadas nos manicômios para aliviar a loucura incomensurável de um ser complexo e de difícil diagnóstico.