domingo, 23 de janeiro de 2011

A mão que não era a minha

Outro dia, não faz muito tempo, fui trabalhar com um sapato diferente em cada pé.
Não, não foi nenhum sintoma de demência precoce ou de disfunção neurológica, acho. Foi apenas uma distração. Estava escuro ao me vestir e acabei confundindo os sapatos – embora, felizmente, não tenha colocado dois pés esquerdos. Levei quase duas horas para perceber o engano, ao notar que um pé pisava diferente do outro.
E o que é que os meus seletos e ocupados leitores têm a ver com isso?
O que eu quero ponderar é que, apesar de errada, atrapalhada e cômica, a decisão de calçar sapatos diferentes partiu de mim. Errei, é certo, mas não fui coagido a isso, não fui induzido a erro por forças ocultas, não tive a decisão de calçar o sapato certo desobedecida e contrariada por quem quer que seja. Não foi, digamos, meu pé direito quem se rebelou, quis usar um sapato diferente de seu colega do outro lado e me obrigou a aceitar sua decisão soberana. Ou, melhor ainda: tomou sua decisão soberana e eu só fui saber dela quase duas horas depois.
Onde eu quero chegar?
Quero chegar no seguinte ponto: estou reforçando a ideia de autonomia de minha parte para o lapso porque usar os dois sapatos diferentes poderia ter sido uma decisão além de mim. Embora pareça estapafúrdia a possibilidade de meu pé direito tomar suas próprias decisões e me fazer passar vergonha, essa hipótese é perfeitamente factível. Isso pode acontecer por causa de uma disfunção cerebral chamada Síndrome da Mão Alheia, cuja ocorrência foi abordada num programa científico da BBC esta semana. A síndrome ocorre quando é interrompida a conexão entre os dois hemisférios do cérebro e eles acabam agindo autonomamente.
Alguns exemplos desse comportamento: você começar a ser estapeado pela própria mão, você querer seguir para um lado e uma das pernas decidir ir para o outro, ou – um exemplo citado no programa da BBC – sua mão direita abotoar sua camisa e a mão esquerda desabotoá-la em seguida, e isso, é claro, sem o seu consentimento.
O problema ocorre porque se rompe a hierarquia dentro da estrutura cerebral. O hemisfério esquerdo do cérebro, que controla o braço e a perna direitos, tende a ser onde residem as habilidades linguísticas. O hemisfério direito, que controla o braço e a perna esquerdos, é mais responsável pela localização espacial e pelo reconhecimento de padrões. Normalmente, é o hemisfério esquerdo, mais analítico, quem domina e tem a palavra final nas ações que desempenhamos. Rompida a ligação entre os hemisférios, quem pode garantir de onde partirá a palavra final?
Para o neurologista Roger Sperry, cada hemisfério cerebral é um sistema de consciência isolado – percebendo, pensando, lembrando, raciocinando, querendo e se emocionando por conta própria. Quando ligados, prevalece a hierarquia de poder.
Quando desligados, não será impossível alguém sair com um sapato enfiado na boca.

5 comentários:

assis angelo disse...

você é um sortudo, marco.
já pensou se as duas pernas decidem ocupar um mesmo sapato?

LesPaul disse...

Pior são mãos com vontade própria no teclado. Saudações de LesPaul/MAISBARULHO.

Marco Antonio Zanfra disse...

Pois eu fico imaginando um onanista com Síndrome da Mão Alheia:imagine uma das mãos com ciúme da outra... Dá crime passional?

cilmar machado disse...

Para mim Zanfra, a Síndrome da Mão Alheia existe de há muito tempo e sua manifestação foi mais intensa em minha juventude quando, no escurinho do cinema, acometia-me em sucessivas crises levando-me muitas vezes a ser estapeado, embora por mãos alheias... Já imaginou se uma onda saudosista qualquer resolver reviver tão áureos tempos?... KKKKk

Marco Antonio Zanfra disse...

Pelo que me lembro, Cilmar, não era "mão alheia", mas "mão boba".