domingo, 12 de junho de 2011

Amigo

Pela janela do avião eu vi o sol nascendo sobre as nuvens, lá longe no horizonte, e me passou rapidamente pela cabeça que esse era um espetáculo que José Luiz não poderia mais apreciar. Foi um pensamento pouco original, reconheço. Mas que espécie de originalidade é possível esperar quando se está a caminho do enterro de um amigo que fazia parte de sua vida havia 37 anos? Aliás, o que é a morte senão um grande, escuro e desconhecido lugar-comum?
Saí de Florianópolis no voo das 6h05 e, ao contrário do que prenunciava o nascer do sol que vira pouco antes, encontrei uma São Paulo cinzenta, à beira de uma chuva intermitente que não demorou meia hora para começar a cair. Havia sido informado do falecimento pouco depois da meia-noite e àquela hora da manhã, depois da noite insone e da viagem rápida, chegava a Congonhas tomado pela perplexidade natural de quem perde um ente querido. É sempre dificil entender a morte, mais difícil ainda aceitá-la.
Acho que é por isso que a ficha demora a cair: você mesmo, inconscientemente, não quer que ela caia. Você mesmo evita assumir a informação de que aquela pessoa que esteve presente em sua vida durante tanto tempo não vai mais estar presente a partir de agora. Ela não vai mais escolher as roupas no armário todas as manhãs, não vai mais comprar pão na padaria para o lanche de domingo, não vai mais emprestar o ombro amigo ou fazer o comentário irônico e inteligente que foi sua marca registrada durante os 37 anos de convivência.
Sua escova de dente perdeu a utilidade, seus sapatos só vão voltar a bater pernas se doados a outros pés. A lembrança fica, mas os bens físicos – e meus poucos mas condescendentes leitores hão de perdoar-me se não consigo abandonar o lugar-comum – devem buscar a reciclagem, porque a vida continua.
Conheci José Luiz Lima ainda no primeiro dia de aula de nosso curso de jornalismo na Cásper Líbero, em agosto de 1974. Estranhei a princípio quando aquele baixinho quase sem pescoço escolheu sentar-se ao meu lado, numa sala cheia de cadeiras desocupadas, mas entendi depois que ele precisava de alguém para encarar com ele a perspectiva do trote acadêmico, e esse alguém – o primeiro que ele encontrou na sala vazia – eventualmente era eu, um garotão de 18 anos com os olhos tão cheios de expectativas quanto os dele.

José Luiz tinha acabado de completar 60 anos quando morreu. Encontrei-o pela última vez no lançamento de meu livro, em 31 de março, três dias antes de seu aniversário, e escrevi na dedicatória: “Ao ‘sexagenário’ Zé Luiz, um abraço com 37 anos de amizade.” Nosso abraço nesse dia está registrado na foto que ilustra esta postagem. Foi nosso último abraço.
Poderia ser mais forte, mais caloroso, se a gente soubesse que seria o último? Acho que não. A gente nunca dá um último abraço num amigo, porque a gente nunca vai acreditar que os nossos amigos também têm a capacidade insensata de não viver para sempre.

14 comentários:

Cintia disse...

Nossa, me arrancou lagrimas, as lagrimas que pertenceram a tantos queridos e queridas que ja se foram..

morani disse...

Zanfra, velho amigo:

Tenho o direito de chamar o escritor Zanfra amigo, por tantos ou quantos anos tenhamos de relacionamento virtual. Sua mensagem se acha eivada de profunda emoção e do mais puro sentimento de saudade pela falta que fará o seu amigo por 37 anos, José Luiz. Não devo dizer mais nada em respeito a sua dor e ao seu sentimento de perda. O silêncio é, no momento, a mais lídima homenagem que faço ao seu amigo ausente e a você. Meus sinceros sentimentos. Ao se perder um amigo perdemos também um irmão. Abraços. Morani

Rui disse...

Muito triste.Certamente ele ficará feliz com a sua sensível homenagem.Mas,como você mesmo citou o sarcasmo que lhe era peculiar,posso até vê-lo comentando:"Gostei muito,mas preferia que eu escrevesse e homenageasse a nossa amizade".

Marco Antonio Zanfra disse...

Eu, sinceramente, também preferia...

Anônimo disse...

Essa é aLonga Viagem que ninguem sabe o destino
Grande abraço e força!

Gleydson disse...

Como diz um amigo meu, a gente só aprende a conviver com a falta da pessoa... Muita força pra você nesse momento delicado.

Abraço!

cilmar machado disse...

Seu desabafo saudoso lamentando um amigo que se foi arremeteu-me ao pensamento de Colette, que diz:
¨ É a imagem na mente que nos une aos tesouros perdidos, mas é a perda que dá forma à imagem. ¨
Meu abraço solidário.

Anônimo disse...

Prezado Zanfra
Interessante que hoje levantei cheia de nostalgia por causa de minhas perdas...familiares,amigos e até meus bichos de estimação.Por mais que queiramos, nunca estamos prontos para as perdas. Cheguei até a comprar um livro que aborda o tema, para me estruturar melhor,espero que de certo. Uma coisa tenho certeza....quando cai a ficha é hora de lembrarmos dos bons exemplos que nos foram deixados por quem se foi.
bjusssssssss
sonia carotta

Sonia disse...

Obrigada amigo,nesta dor que não se ajeita,nos embaraça,e não se consegue explicar na verdade o que ela é,é bom ter o abraço dos amigos.
Sônia.

Sonia disse...

deixo aqui registrado que o Marco certamente é um dos melhores amigos do meu pai, não é à toa que alguém viaja de Florianópolis a São Paulo para se despedir de outra pessoa. Precisa ter muito afeto. Obrigado pela homenagem Marco, meu pai e amigo deixou muitas saudades. abraço.
Luís Aurélio

Marco Antonio Zanfra disse...

Pena que minha presença só serviu mesmo para juntar minhas lágrimas às de vocês...

Anônimo disse...

Zé foi amigo de tantas pessoas com as quais ele trabalhou...Sempre tranquilo, mais calado, como que observando tudo e a todos, ele conseguia marcar sua presença com espirituosidade, talento e inteligência. Há muitos anos não o via e nem sabia detalhes da família. Mas isso não diminui minha admiração e saudade. Deixo meus melhores sentimentos à família.

Cristina Medeiros

Enéas disse...

Zanfra, que notícia triste que fiquei sabendo agora. Trabalhamos juntos em duas oportunidades, eu e o Zé. Tinha por ele grande afeição. E a única coisa que me alegra neste desenlace é que nunca deixamos de honrar nossa amizade, mesmo nos piores momentos em que ela foi colocada à prova. Descanse em paz, compaheiro.
Enéas MF

Débora disse...

Escrevi e apaguei pelo menos cinco vezes. Decido dizer que dói, dói mesmo.
Força
Bjo padrinho